Não, não fiz nenhuma figura triste a chorar à frente de ninguém mas tive de me controlar um pouco porque não foi fácil...O que me valeu foi a janela que estava ali mesmo ao lado da cama e deu para pôr os olhos no horizonte e ver que a vida lá fora continua e que o dia apesar de não ser dos mais bonitos, mostrava uma Lisboa linda como sempre.
A C. era a nossa doente do dia de hoje, à qual estávamos encarregues de colher a história clínica. Pois bem, a C. tem 53 anos mas aparenta ter 70, não tem qualquer dente na boca, calculo que pese cerca de 30 kg, tem HIV e Hepatite C, é toxicodependente há 25 anos e está longe dos filhos que segundo ela são o clímax da sua vida ( palavras da própria) há tempo demais. Os filhos ficaram na sua terra de origem, lá longe onde os deixou quando o vício da heroína e cocaína falou mais alto. Não fazem a mais pequena ideia do que é a vida da mãe neste momento, não sabem que está internada há quase 3 meses,que viveu os últimos tempos na rua, não sabem que foi encontrada inanimada na rua largada ao seu destino, não sabem que esteve nem sei quantos dias na corda bamba mais para lá do que para cá. Provavelmente nem sabem que tem HIV...
Isto é o pão nosso de cada dia no serviço, quase todos os doentes que vejo são assim, histórias destas. Ninguém fica indiferente a uma história assim, mas há pessoas que nos tocam mais fundo, e a C. hoje mexeu comigo. Acho que foi a forma lúcida e absolutamente consciente da sua realidade, a forma como falava dela própria e do amor aos filhos e como sabia que agora era a (última) oportunidade de se livrar daquela vida, de começar a ter juízo e a tomar os medicamentos, agarrar a oportunidade que lhe deram de entrar num programa de reabilitação, é agora ou nunca! Deixámo-la com a promessa de voltar amanhã, desta vez não para a chatear com perguntas mas apenas para dizer um bom-dia e dar força e apoio moral, mas o mais certo é que ao fim de 25 anos o vício não a deixe nunca, o mais certo é que não consiga fugir daquela vida desgraçada que tem...
5 comentários:
Queria escrever qualquer coisa de "apoio", mas a única coisa que posso dizer é que passei por uma situação parecida e sei como é... :S
E olha, lembra-te dos meninos que ajudaste a nascer à um tempo atrás, quando não tiveres uma janela para veres o horizonte, deve ajudar...
beijinho
transmites a realidade que vês para palavras duma maneira que também quando quero comentar,nunca sei o que dizer.mas o manto da realidade realmente não é fácil.beijinho
ai que erro tão grande:
* há um tempo...
realmente, é uma situação muito dificil.
Pensa que talvez faças a diferença na vida dessa mulher. Tenta ver o lado positivo.
Beijos,
Bá
E pronto, ao longo de uma hora, já ri,ja fiz de conta que era uma pessoa culta, já sorri, já me enterneci e agora choro desalmadamente...
Ainda bem que o mundo tem gente com a tua coragem e dedicação.
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